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Alma do Diabo

Alma do Diabo

Impressões em mais do que três linhas

31.12.22

2022, não foi por mal

Tenho a impressão de que os graves problemas de 2022 tem a ver comigo. Por ter sido incauto não prestei atenção às superstições que existem com as passagens do ano. Devo admitir que elas são verdadeiras e perigosas. Alerto todos que lhes dêem valor e que se sujeitem às suas leis.

Se não acreditam, reparem, de 2021 para 2022, nas doze passas que devemos comer na passagem do ano, não me recordo quantas engoli, perdi-me, talvez à nona, quase que me atrevo a dizer, que comi a 13ª e pedi também um desejo. Além disso, quando alguém me perguntou que doze desejos tinha pedido, respondi em tom de brincadeira, “Ora, paz no mundo pois claro”. Outro exemplo, a minha mãe sempre que me escolhia a indumentária, selecionava cuecas azuis, ora, como já sou eu a escolher, lembro-me agora, que optei pelas verde tropa, com bananas desenhadas. Toda a gente sabe que, sem cuecas azuis os astros não actuam favoravelmente e desregulam o normal funcionamento do mundo. 

Graças a isto, peço desculpa ao mundo por todo o sofrimento causado, confesso ignorância em relação às rígidas condições das superstições e considero-me enriquecido com os ensinamentos. Assim sendo, em 2023 às 0h01, sempre que comer uma passa vou apontar no papel, não vou revelar nenhum dos desejos e garanto que vou ter umas cuecas azuis cor de céu solarengo, para não haver dúvidas com o preto. Mas… será que faço bem escolher os desejos já à meia noite ou será melhor uns segundos antes do ano começar!? Bom, espero não me enganar desta vez.

 

Por: Filipe Fidalgo

Luigi Pirandello . Como me vejo e como me vêem

26.12.22

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“Se para os outros eu não era o que até agora acreditava ser para mim, quem era eu?

E os outros? Os outros não estão dentro de mim. Para os outros que olham or fora, as minhas ideias, os meus sentimentos tem um nariz. O meu nariz. E têm um par de olhos, os meus olhos, que eu não vejo e eles vêem. Que relação há entre as minhas ideias e o meu nariz? Para mim, nenhuma. Eu não penso com o nariz, nem faço caso do nariz enquanto penso. Mas os outros? Os outros que não podem ver as minhas ideias dentro de mim e vêem, de fora, o meu nariz? Para os outros, há uma relação entre as minhas ideias e o meu nariz que, suponhamos, se as minhas ideias fossem muito sérias e o nariz, pela sua forma, muito cómico, se punham a rir.

Prosseguindo esse pensamento, mergulhei nesta outra questão: eu não podia, enquanto vivia, representar-me a mim mesmo nos actos da minha vida; ver-me como os outros me viam; pôr o meu corpo diante de mim e vê-lo viver como o de outra pessoa. Quando me punha diante de um espelho, dava-se como que uma paragem em mim; toda a espontaneidade cessava, todos os meus gestos me pareciam fictícios ou estudados.

Eu não podia ver-me viver.”

 

PIRANDELLO, Luigi. Um, ninguém e cem mil. 3ª ed. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2014.

 

Por: Celeste Sampaio

 

Gonçalo M Tavares . A bondade e a Técnica

25.12.22

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“…Salvava os homens doentes que por si eram operados: o seu bisturi combatia a explosão e reinstalava a precisão e a ordem. Sentia-se digno porque a sua mão direita era, “em combate” (na operação) digna ela mesma. Mas a cada dia que passava os elogios e a admiração técnica que os doentes, os colegas médicos e o pessoal do hospital lhe dirigiam tornavam-se insuportáveis. Não o irritava ser considerado competente mas sim que essa competência fosse confundida com uma certa bondade, sentimento que desprezava em absoluto. E essa confusão - entre bondade e competência técnica - começava a corroer a barreira que Lenz havia construído entre a sua profissão e a sua vida particular na qual a dissolução de valores morais era nítida. O prazer que sentia em humilhar prostitutas, mulheres fracas ou adolescentes, pedintes que lhe batiam à porta ou a própria mulher, não podia ser mais antagónico com a aura que alguns familiares de doentes por si operados e salvos lhe colocavam em volta.

Foi por essa razão , nessa tarde, quando a mulher ingénua, ao agradecer o facto de ter operado com sucesso a mãe, lhe disse:

- Você é um homem bom! - ele sentiu necessidade de à frente do pessoal do hospital, responder, com rudeza:

- Desculpe, não sou nada disso, sou médico.”

 

TAVARES, Gonçalo M. Aprender a Rezar Na Era da Técnica, POSIÇÃO NO MUNDO DE LENZ BUCHMANN. 5ª ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2007.

 

Por: Celeste Sampaio

Clarice Lispector . Felicidade

24.12.22

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“- O que é que se consegue quando se fica feliz?, a sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana.

- Repita a pergunta…?

Silêncio. A professora sorriu arrumando os livros.

- Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.

- Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? - repetiu a menina com obstinação.

A mulher encarava-a surpresa.

- Que ideia! Acho que não sei o que você quer dizer, que ideia! Faça a mesma pergunta com outras palavras…

- Ser feliz é para se conseguir o quê?

A professora enrubesceu - nunca se conseguia dizer porque ela avermelhava. Notou toda a turma, mandou-a dispersar para o recreio.

O servente veio chamar a menina para o gabinete. A professora lá se achava:

- Sente-se… brincou muito?

- Um pouco…

- Que é que você vai ser quando for grande?

- Não sei.

- Bem. Olhe, eu tive também uma ideia - corou.

- Pegue num pedaço de papel, escreva essa pergunta que você me fez hoje e guarde-a durante muito tempo. Quando você for grande leia-a de novo - Olhou-a. - Quem sabe? Talvez um dia você mesma possa respondê-la de algum modo… - Perdeu o ar sério, corou. Ou talvez isso não tenha importância e pelo menos você se divertirá com…

- Não.

- Não o quê? - perguntou surpresa a professora.

- Não gosto de me divertir - disse Joana com orgulho. A professora ficou novamente rosada:

- Bem, vá brincar.

Quando Joana estava porta em dois pulos, a professora chamou-a de novo, dessa vez corada até ao pescoço, os olhos baixos remexendo papéis sobre a mesa:

- Você não achou esquisito… engraçado eu mandar você escrever a pergunta para guardar?

- Não, disse.

Voltou para o pátio.”

 

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. 1ª ed. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 2000.

 

Por: Celeste Sampaio

Clarice Lispector . Eternidade

24.12.22

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“Definir a eternidade como uma quantidade maior que o tempo e maior mesmo que o tempo que a mente humana pode suportar em ideia também não permitiria, ainda assim, alcançar sua duração. Sua qualidade era exactamente não ter quantidade, não ser mensurável e divisível porque tudo o que se podia medir e dividir tinha um princípio e um fim. Eternidade não era a quantidade infinitamente grande que se desgastava, mas eternidade era a sucessão. Então Joana compreendia subitamente que na sucessão encontrava-se o máximo de beleza, que o movimento explica a forma… e na sucessão também se encontrava a dor porque o corpo era mais lento que o movimento de continuidade ininterrupta. A imaginação aprendia e possuía o futuro do presente, enquanto o corpo restava no começo do caminho, vivendo em outro ritmo, cego à experiência do espírito. Através destas percepções ela se comunicava a uma alegria suficiente em si mesma.”

 

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. 1ª ed. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 2000.

 

Por: Celeste Sampaio