Alma do Diabo - Começaríamos por perguntar-lhe o que o levou a seguir a carreira de Direito Internacional?
Alexandre Guerreiro: Desde muito jovem, não me recordo da altura em concreto, mas, eventualmente, na adolescência, interessavam-me muito as questões de política internacional sobretudo pela diferença e contacto entre culturas. Achava, no entanto, que a via das Relações Internacionais e da Ciência Política era muito redutora e, como quis seguir Direito e gostei das cadeiras relacionadas com política e com Direito Europeu e Direito Internacional, bem como com o Direito Penal, achei que era um caminho para seguir. A verdade é que o Direito Internacional tem a virtude de juntar aspectos de política e direito interno com a realidade de muitos países e cruza-se ainda com todas as áreas do Direito. Acho que é, na verdade, a área mais abrangente do Direito e um desafio constante.
AD – Demonstra ter um vasto conhecimento de geopolítica a nível global, mas debruça-se sobretudo no que diz respeito à Rússia, falando até a língua do país. Este interesse é apenas profissional ou é também admiração pela historia e cultura desse povo?
AG: A minha inclinação para a Rússia é um misto de vários factores: desde logo, as questões relacionadas com a Rússia suscitam-me particular interesse pela história e pela cultura do povo russo, é um país que foi império (durante o czarismo), reconfigurou o seu modelo de império (entre 1922 e 1991) e mantém as características de império que convive de forma única com 192 grupos étnicos, várias nações e 11 fusos horários. Tem uma característica em comum com a Alemanha dos últimos 140/150 anos: sempre que bateu no fundo e a julgavam de rastos, reergueu-se e impôs-se como potência continental e global. Depois, a Rússia tem outra particularidade que desperta o meu lado de investigador desde há muitos anos: é permanentemente diabolizada e alvo dos mais variados preconceitos, seja ao nível político, seja também ao nível social. Desde que me conheço como pessoa que sempre vi à minha volta (em alguns meios próximos e até na escola) pessoas que falavam da União Soviética e da Rússia como um país de bandidos, de carniceiros, de gente oprimida e na miséria. Isto desperta a minha curiosidade a ver se é mesmo assim como contam. Sou assim em tudo na vida. Mas a Rússia é o "assunto quente" do momento, talvez por isso pareça que me dedico em exclusivo à Rússia, o que não é verdade. Tenho uma boa parte da minha carreira dedicada ao continente africano, às questões europeias e também às dinâmicas no mundo islâmico. Aliás, basta ver pela minha produção científica, a qual inclui, naturalmente, a Rússia e a União Soviética.
AD - Tem-se revelado, provavelmente, o mais certeiro analista português do conflito militar na Ucrânia. Nos seus vídeos antecipa acontecimentos que se concretizam em poucos dias. Isto, contrariando a opinião vigente na comunicação social dominante. Mesmo assim, em Portugal é apelidado de pró-russo, putinista, ex-espião…
Qual é o problema da opinião em Portugal? Será que o espaço mediático é demasiado pequeno para a crítica às ideias dominantes?
AG: Agradeço o elogio e o reconhecimento, mas tenho de frisar que o analista não faz vidência, faz análise de determinadas realidades com base em sinais que vai recolhendo ao longo do tempo e a partir dos quais consegue passar a compreender uma realidade fundado numa base comportamental dos decisores políticos e da população. E é essa compreensão e capacidade de adaptação a meios culturalmente, por vezes, antagónicos ao nosso que ajuda a antever o acontecimento seguinte. Claro que em determinadas realidades pode demorar mais tempo do que noutras. E é por isso que é preciso, antes de mais, trabalhar os acessos à informação, incluindo a privilegiada. Porque é a informação certa e verdadeira que possibilita análises mais eficazes. O problema da opinião em Portugal é o problema do país em geral: há demasiada gente a falar do que não sabe e a "inspirar-se" em todo o tipo de fontes que corroborem os seus preconceitos, porque as pessoas querem partir de um preconceito e agarrarem-se a todo o tipo de elementos que as ajudem a validar esse preconceito como sendo o caminho certo, o que significa que a probabilidade de acerto é manifestamente baixa. Actualmente, faltam "expedidores" a Portugal: nomes como Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto são uma miragem apenas digna dos livros de história, já não temos quem vá para o campo sem preconceitos à descoberta na esperança de passar a conhecer o desconhecido. Agora, a generalidade dos académicos faz "ciência" com base naquela lógica que descrevi na frase anterior, o que faz com que não tenhamos académicos e tenhamos, antes, pseudo-activistas que usam a ciência e querem criar ciência para fins errados. Começa aqui e depois arrasta-se para a comunicação social, que em vez de servir o interesse público serve, cada vez mais, de megafone de agendas ideológicas e empresariais. Só isso justifica termos meios de comunicação absolutamente despudorados na recusa que fazem do pluralismo nos mais variados meios. E é por isso que pessoas como eu têm sempre rótulos sobre si: quando me chamam "pró-Rússia" ou "putinista", etc, são as pessoas a atacarem o mensageiro quando são impotentes para colocar em causa a mensagem. Muitos não acreditam, mas chamarem-me esse tipo de coisas passa-me completamente ao lado.
AD - Que tipo de represálias tem sentido desde o início do conflito?
AG: Ser preterido em concursos académicos quando sou o mais qualificado, tenho vários exemplos; ser tratado como produto tóxico pelos pares na Faculdade de Direito de Lisboa; ser também visto como tóxico pelos meios de comunicação, alguns dos quais aonde eu tinha alguma presença; os insultos e ameaças diários (literalmente) desde o início do conflito; as pessoas que se foram afastando por eu "ser" o "ex-espião putinista".
AD - Tendo em conta o bloqueio ocidental a várias fontes noticiosas (as consideradas aliadas ou dependentes do governo russo), quais são os canais de informação credíveis, e ainda acessíveis, que recomendaria ao cidadão comum que apenas queira conhecer o outro lado do conflito?
AG: Sinceramente, com algumas reservas, destaco a neutralidade geral da Al Jazeera, onde ainda vamos encontrando uma abordagem minimamente séria. A Reuters também consegue ser feliz na maior parte das abordagens que faz. A partir daqui, quem quiser conhecer o outro lado do conflito sem exageros ideológicos (porque também os há do lado russo) tem de recorrer à RT, à TASS, à RIA Novosti e ao VZGliad.
AD - Existe assim tanta diferença de liberdade de expressão entre o mundo ocidental e o mundo russo? Na Rússia, vive-se de facto sob o controlo de um regime autoritário ou podemos falar de um país mais próximo das democracias ocidentais?
AG: Temos de começar por definir "democracia". A democracia não é o que os Estados proclamam ter, nem sequer o que os manuais académicos ou os manifestos políticos dizem que é. Democracia é o que as pessoas sentem que têm e a forma como o Estado prossegue o bem-estar e o ser humano como fim e não como meio. Eu dou sempre o exemplo do Democracy Perception Index, um estudo conduzido pela Alliance of Democracies Foundation. Uma das primeiras conclusões deste estudo, realizado anualmente, é que "as pessoas não pensam que os seus países são muito democráticos... mesmo nas democracias". Repare que, à luz deste estudo, a China é o 2.º país, após a Coreia do Sul, com menor número de pessoas a acharem que a democracia do seu país fica aquém do que entendem ser necessário. Há mais pessoas em Portugal a acharem que o nosso país não tem democracia suficiente do que na Rússia. Mesmo as ditas "democracias ocidentais" têm nuances: não são democracias no seu estado pleno, são democracias sempre condicionadas por agendas ideológicas e reféns da forma ocidentalizada de ver o mundo. Só por aqui a Rússia será sempre considerada "distante" das democracias ocidentais. Repare que a Ucrânia tem vindo a evoluir como ditadura e por cá continua-se a falar da Ucrânia como exemplo de liberdade. Até 23 de Fevereiro de 2022, a Ucrânia era o ninho dos neonazis de toda a Europa, a partir de 24 de Fevereiro de 2022, a Ucrânia passou a ter resistentes e justiceiros pela liberdade. Se a democracia é incoerente e volátil em função de modas, então a Rússia seguramente não é uma democracia ocidental. A verdade é que, digo-o sem qualquer problema, na Rússia há liberdade de expressão e é um país onde não existem direitos fundamentais absolutos, estando todos eles sujeitos a uma reserva geral de ponderação... como, aliás, se verifica em todas as "democracias ocidentais".
AD - Em Portugal, talvez seja unânime a opinião de que na Rússia, além da falta de liberdade de expressão, falta também qualidade de vida e de que esta nação tem valores manifestamente inferiores aos dos ocidentais. Como se ainda existisse uma cortina de ferro a separar as duas realidades. É assim na realidade?
AG: Uma vez mais, vou justificar a minha posição com base nos indicadores de entidades oficiais. Em 2022, a UN-Habitat lançou um estudo em que avaliou o nível de prosperidade das 50 maiores metrópoles mundiais. Além de metrópoles ocidentais, temos também Moscovo e outras de outros pontos do planeta. No final, Moscovo ficou em 1.º lugar em dois indicadores: qualidade de vida e infra-estruturas. Logo aqui, a UN-Habitat deve ser putinista ou, então, está "comprada" por Sobyanin (Presidente da Câmara Municipal de Moscovo). A qualidade de vida em Moscovo, por exemplo, é inacreditavelmente superior à do Ocidente: o Estado funciona, a sociedade funciona, não falta nada. Claro está que não podemos interpretar as dificuldades linguísticas como "falta de qualidade de vida". Não é, certamente, esse o critério. Depois, os russos têm outra virtude: não são tolerantes com o crime, sobretudo os crimes contra a vida e os crimes sexuais. Têm mão pesada e repudiam este tipo de crimes como não encontramos no Ocidente, onde, não raras vezes, vemos crimes sexuais contra crianças serem sancionados com penas suspensas. O sentido de colectivo, de comunidade, é superior na Rússia do que no Ocidente, incluindo em Portugal, não tenho dúvidas do que digo.
AD - Quais são, em Portugal, os analistas e/ou comentadores que considera que acrescentam valor ao debate público?
AG: No que respeita a Rússia, o Major-General Agostinho Costa, o Major-General Carlos Branco e o Major-General Raul Cunha. Sobre política em geral, sempre me assumi fã da Marina Costa Lobo e do António Costa Pinto. São, na minha opinião, os mais ponderados e equilibrados e que trazem vários pormenores para reflexão que não encontramos noutros.
AD - Há uma percepção que nós, europeus, estamos a seguir os EUA para conflitos sem questionar. Tendo em conta a falta de crítica dos vários líderes europeus, pensa que ainda existem lideranças fortes, países com voz própria?
AG: Lideranças fortes temos várias, sobretudo algumas que servem para liderar no sentido de convencer os seus a seguirem as orientações dos EUA. Também temos vários exemplos de vozes dissonantes sem que isso signifique necessariamente a presença de uma liderança forte. Mas lideranças fortes no sentido de se ter a capacidade para olhar à volta e tomar decisões difíceis, mas sensatas, sem receios de se ser perseguido por grupos de Estados ou até no plano interno, vejo apenas Viktor Orbán e Recep Erdogan (no quadro União Europeia/NATO). Depois, temos, claro, Vladimir Putin, Ali Khamenei e Xi Jinping.
AD- Quais considera serem os grandes líderes dos últimos 30 anos?
AG: Vladimir Putin e, com as devidas proporções, Aung San Suu Kyi, Recep Erdogan e Angela Merkel.
AD - Pensa que estamos a assistir à quebra de valores da União Europeia e à sua consequente morte lenta?
AG: A União Europeia é uma organização regional com características de Estado semi-federal e não tem uma identidade própria definida por acordo dos Estados, é um barco à deriva empurrado pelos ventos do "Novo Mundo". Ainda hoje, ninguém sabe exactamente quais são as características da União e que a diferenciam dos EUA, ainda hoje não foi possível construir a consciência de "cidadania europeia". E ver lideranças da União Europeia e dos Estados como sendo meros fantoches de interesses empresariais e ideológicos só ajuda à implosão da União.
AD - O conflito na Ucrânia trouxe à ordem do dia assuntos da política internacional que há muito mereciam a nossa atenção. Um desses assuntos é a disputa entre o Ocidente, a Rússia e a China pela África. Figuras tão diferentes quanto Sergey Lavrov e Josep Borrell visitaram o continente e os Estados Unidos convidaram vários chefes de estado africanos para uma cimeira em Washington que não se realizava há 8 anos. Nesta velha/nova corrida a África, tanto a Rússia como a China podem sair favorecidos em detrimento dos ocidentais.
Considera ser este um cenário provável? Se sim, qual seria o impacto na balança do poder a nível mundial e quais seriam as consequências para a Europa?
AG: Julgo que a crescente capacidade de Rússia e China para se assumirem como alternativa que constrói pontes prósperas e destrói muros de preconceitos só atrai mais países para a esfera de influência de ambos. Os pontos em comum são manifestamente superiores e maiores em quantidade do que os pontos de divergência. Os BRICS continuam a afirmar-se nos planos económico e político e em Julho vamos ter uma Cimeira Rússia-África que só vai servir para estreitar ainda mais os laços entre a Rússia e África. A desdolarização está em curso com resultados já bastante visíveis. Entretanto, o Ocidente continua com a forma de pensar de 1815: nós somos os povos civilizados e os outros são os bárbaros. Ninguém se aproxima de alguém que tem esta ideia e forma de estar connosco.
AD - Além da China e da Rússia, quais são as nações que poderão vir a assumir maior proeminência na liderança mundial? E de que forma isso mudaria o mundo?
AG: Os BRICS, a Arábia Saudita, a Nigéria, a Argentina, o Vietname e a Turquia. Todos estes são o verdadeiro reflexo de uma ordem multipolar onde não temos a hegemonia das ambições do universalismo ético de uma potência ocidental, mas privilegiamos o relativismo cultural com vários focos de poder que procuram chegar ao entendimento, insistindo numa perspectiva de equilíbrio global e no multilateralismo que tem sido sucessivamente adiado desde 1945.
AD- Que projectos tem para o futuro? Augura dedicar-se à política a curto, médio prazo?
AG: Quero continuar a apostar no crescimento do meu canal de YouTube que vai apresentando resultados muito interessantes, na minha óptica. Depois, quero manter a minha actividade de investigação em questões internacionais. Tenho parcerias com instituições de ensino superior da Rússia, da Polónia e da Malásia e espero continuar a expandir essas parcerias nos domínios da investigação e do ensino do Direito Internacional. A política não é algo que me passe pela cabeça como prioridade, até porque não gosto de me fazer convidado, espero que me convidem. Mas insisto no que tenho dito ao longo dos últimos anos: embora não tenha em vista nada no imediato, com o projecto certo e com as pessoas certas, jamais diria que não a um convite para a política. Depende do que aparecer e se aparecer. Se surgirem projectos nos quais não me reveja (sempre ciente de que não existem projectos e organizações que sejam o meu reflexo a 100%) ou que não me motivem, não quero aparecer por aparecer. Não tenho tempo para isso.