Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Alma do Diabo

Alma do Diabo

Raul Brandão - A Vida e o Sonho

31.07.23

1115977.jpg

A vida é dura, a vida não se fez para sonhar; para triunfar é necessário bater para os lados sem ver quem vem, agarrar-se a gente com sofreguidão, morder...

Ai dos vencidos! Pobres dos que hesitam um instante! Auxiliar alguém é perder tempo: prá frente! prá frente!... Fora o sonho! Para que é que em pequenos nos mentem e nos dizem que há amigos e afeições?... Entra a gente na vida com ilusões, que só se perdem com pedaços de alma, quando muito melhor seria dizer-nos que há unicamente o dinheiro. Dinheiro! - esta palavra faz vibrar os mais moles: gadanhos convulsos estendem-se ávidos, os olhares ferem como lâminas... Para que andamos a mentir uns aos outros, quando nos sentimos todos, aos trinta anos, capazes de sacrificar um irmão ao interesse?...

Veem um imaginativo que entra na vida? É um jovem inteligente, tendo sobre a existência ideias lidas. A sua sensibilidade exaspera-se ao primeiro contacto com o mundo. Cheio de entusiasmo, talha uma vida de romance. Em breve, porém, encontra tropeços: a cada passo a alma se lhe magoa e todas as brutalidades o ferem. É que ele não viu que, ao lado da vida sonhada, é preciso viver uma outra vida dura, de todos os dias. Repugna? É necessário, porém, a gente afazer-se, esmagar toda a piedade e afeição, para não ser despedaçado. Quantos chegam a velhos a tal ponto vivem na mentira, acreditando que amaram, que souberam dedicar-se e que na vida se pode ser bom? Se procurarem bem no fundo da alma, esmiuçado cada um desses sentimentos, encontra-se apenas o egoísmo descarnado e duro…

 
BRANDÃO, Raul. A Morte do Palhaço. Book Cover Editora.
Escolhido por: Augusto Bessa

 

Marina Tsvetaeva - Depois da Rússia

29.07.23

Marina_Tsvetaeva_1914.jpg

EURIDICE - PARA ORFEU

Para quem esgotou os últimos farrapos
Da carne (não há lábios nem faces!...)
Não será um abuso dos direitos
Orfeu descer ao Hades?
 
Para quem rejeitou os últimos elos
Terrestres... Quem no leito dos leitos
Recusa a mentira da contemplação
E olha para dentro - o encontro é faca.
 
Porque - todas as rosas do sangue
São a paga desta capa folgada
Da imortalidade...
                           Tu, que me amaste
Até ao nascer do Letes, dá-me a paz
 
Da memória apagada... porque nesta casa
Assombrada -o fantasma és tu, vivo,
E eu, morta, o real... Que mais te direi senão:
«Esquece e dá-me a paz!»
 
Não me darás vida! Não me seduzo!
Já não tenho mãos! Nem lábios para neles
Colares os lábios! A paixão da mulher acaba
Com a picada de víbora da imortalidade.
 
Porque está tudo pago - lembra-te dos meus gritos! -
Por esta derradeira vastidão.
Não vale a pena Orfeu descer a Eurídice
Nem irmãos inquietarem irmãs.
 
23 de Março de 1923
 
TSVETAEVA, Marina. Depois da Rússia, 1922-1925. Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra. Editora: Relógio D’Água.
Escolhido por: Augusto Bessa

A indústria do pão por André Schiffrin

29.07.23

O-Negocio-dos-Livros.jpeg

Se há coisa que aprecio mais do que livros é de pão. Se me oferecem metáforas com pão para entender o funcionamento do mercado dos livros eu entendo. Foi o que André Schiffrin fez no seu livro O NEGÓCIO DOS LIVROS - COMO OS GRANDES GRUPOS ECONÓMICOS DECIDEM O QUE LEMOS (se calhar foi pelo título longo que isto não vendeu). Que pena, este pequeno livro da LetraLivre ter saído em 2013 e não em 2023, já que, tal como as ervas daninhas saltam em terra fértil, também os temas sobre a depressão livreira hoje rejubilam (livros esses comprados por encomenda através das grandes companhias). 

Então, segundo Schiffin, a partir de um inquérito realizado nos Estados Unidos da América percebeu-se que as grandes marcas nacionais de panificação vieram substituir as padarias de esquina que existiam na cidade. Para isso, o que essas malvadas faziam era vender o pão a preços mais baratos do que os praticados pelos pequenos padeiros. A esses pobres diabos ainda foram oferecidos melhores preços para darem maior visibilidade a esse pão industrial. Depois de um começo de parceria atraente vem a traição e o pequeno sai de mercado e fica a chuchar no dedo. Final da história, as grandes empresas permanecem, eliminam a concorrência e aumentam preços. O mercado flui e o consumidor contenta-se a comer o pãozinho de plástico que ficou mais caro sem saber porquê. Anos depois surgem novas padarias “gourmet” em que o pão é verdadeiramente especial e artesanal, só que, já não é para qualquer bolso. Este trágico desfecho é transposto para o mercado livreiro e, da mesmo forma que, sem nos aperceber comemos pão sem qualidade, estamos a ler livros com sabor a plástico (como quem diz a azedo, pois merda nunca comi). 

O NEGÓCIO DOS LIVROS é um bom manual sobre o outro lado de um livro, dá-nos uma certa consciência sobre o rectângulo com folhas. Um livro que está exposto numa montra de uma grande livraria (não me pagam a publicidade, e eles nem precisam…) pode ser por um interesse perverso, ou o tema é actual e é atrativo, ou o autor é vendível pois é figura pública, ou a polémica já foi instalada, ou a moda o impôs, ou a televisão e jornais o aconselharam, ou… ou… os motivos são sempre satisfatórios para um consumidor que sem o saber é um fabrico dessa indústria (porquê pensaram num burro?). E nem se imagine a quantidade de pães que se produz por dia! Haja bocas para enfiar tanto pão. 

Segundo Schiffrin quem nos produz o pãozinho trata-se de industriais mais ligados ao ramo da gestão do que ao da panificação, o que por si, revela a falta de investimento na qualidade do material que o freguês tem na montra, mas, sobretudo na arte de saber vender. Não importa se o sabor é bolorento ou se o consumidor fica enriquecido, interessa saber se o negócio incrementa. Atente-se por exemplo às Feiras dos Livros que, segundo os seus directores, aumentam lucros todos os anos (e em Portugal reparem bem, onde ninguém lê). É interessante ver a ginástica que os livros de grandes editoras fazem nas estantes das principais cadeias de vendas, a capa é sempre exposta, mais abaixo outras editoras, sem tanto potencial económico, relegadas para a sua simples lombada. Capa e lombada em luta numa grande livraria. Ora, o habitual comprador português de livros não tem tempo para se inclinar para as lombadas, tem de se decidir por uma capa naturalmente, até porque tem de se despachar pois a seguir ainda vai ter de ir comprar roupa. Portanto, a editora tem de se preocupar em ter boas ligações com as mercearias do pão, ter boas relações com os jornais e órgão de imprensa que falem de pão, e fazer uma boa capa - bons títulos, de preferência com palavrões ou palavras vãs como AMOR, PAIXÃO, CORAÇÃO e o car&%i&/o a 4…

Estamos confrontados com uma situação clássica de oligopólio tendencialmente monopolista. As ligações dos grandes grupos económicos, através da concentração de propriedade, a outros meios de comunicação concedem-lhes vantagens incríveis na imprensa, na televisão, e na exposição mediática e publicitária em jornais. Empresas que são proprietárias de editoras e de revistas não hesitam em prestar uma atenção desproporcionada aos livros das editoras que controlam. São óbvias as mudanças necessárias para lidar com este tipo de poder. A solução mais eficaz para enfrentar a crescente monopolização está nas mãos do governo 

Os livreiros e editores transformaram-se em directores de marketing, que não fazem mais do que garantir um serviço lucrativo a uma empresa. O problema que Schiffrin levanta tem que ver com essa plastificação de um serviço de culto, de valor artístico, de conhecimento, reduzido a uma simples mistela de palha. Quantos bons escritores hão-de haver perdidos por essas lombadas prontos para serem descobertos por um leitor corajoso? Existe um grande dilema do ser-e-do-parecer e, quem gere estes negócios, por norma, parece alguém que muito lê e conhece do meio literário, mas talvez não o seja de facto. No dia em que estes directores de marketing perceberem que aqueles livros que lhes preenchem as estantes lá de casa também se podem ler, vão ficar em êxtase com tal descoberta.

 

Por: Luiz Miguel Aragão

Marina Tsvetaeva - Depois da Rússia

28.07.23

love-in-female-form-by-4.jpg

OFÉLIA - EM DEFESA DA RAINHA
 
Príncipe Hamlet! Deixa de incomodar
Os vermes do jazigo... olha para as rosas!
Pensa naquela - que mesmo rosa de um dia -
Conta os últimos dias.
 
Príncipe Hamlet! Deixa de denegrir
O seio da rainha... Não compete a virgens -
Julgar a paixão. Mais culpada é Fedra:
Ainda hoje a cantam.
 
E cantarão! - E vens tu, príncipe, com essa
Mistura de cal e putrefacção... Usas de má-língua
Com os ossos, Hamlet! Não cabe à tua mente
Julgar o sangue em chamas.
 
Mas se... Cuidado então... Pelas lajes -
Lá em cima - na alcova - até se fartar!
Em defesa da Rainha me levanto-
Eu, tua paixão imortal.
 
28 de Fevereiro de 1923
 
TSVETAEVA, Marina. Depois da Rússia, 1922-1925. Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra. Editora: Relógio D’Água.
Escolhido por: Augusto Bessa

 

 

Diabopédia

15.07.23

Eusébio da Silva Ferreira

 

Eusebio.jpg

É um ser conhecido como sendo um animal. Alguns até lhe chamavam pantera… os mais racistas, pantera negra.

É um ser evoluído para a sua época, consta ser o primeiro ativista pelos direitos femininos em Portugal - salvou uma grande quantidade de mulheres entre o período de 1960 a 1975 de levarem surras em casa. Para esse grande feito contribuíram os seus portentosos golos de belo efeito, alguns mesmo no limite de fúrias de almas lusitanas. Foi por isso que o consideravam um homem do povo. Em contraste era grande inimigo dos aristocratas e viscondes, só de ouvirem o nome “Eusébio” ficavam com insónias, calafrios e alguns até diziam palavrões.

É um ser também recordado pelos seus feitos mitológicos, diz-se que jogou uma vez com um pé partido, noutro jogo com uma perna partida, noutro ainda de muletas. Segundo as fontes, em todos esses jogos foi o melhor em campo. Memorável também ficaram os seus pontapés furtivos, na qual conseguia bater com o joelho na testa. Segundo dizem, nunca partiu a cabeça por isso pois a sua cabeça era de aço. Grande artista também no campo dos acepipes, criou o conceito “camarão de Eusébio”, camarões esses com casca amarela e esponjosa, bem mais fáceis de comer do que os tradicionais.

Tornou o Benfica famoso com 2 conquistas internacionais, fazendo perpetuar a fama do Benfica como “o melhor clube do mundo” que continua a ter milhares de apoiantes. Vive actualmente no Panteão Nacional ao pé de outros amigos. É presença assídua junto ao Estádio da Luz e os pombos faltam-lhe ao respeito sucessivamente.

 

Edgar Lee Masters – Epitáfios de Spoon River

14.07.23

life-sketch-of-edgar-lee-masters.jpg

CHASE HENRY

Em vida eu fui o bêbado da vila;
quando morri o padre negou-se a enterrar-me
em solo sagrado.
E isso acabou por ser para mim uma sorte,
pois os Protestantes compraram este lote
e enterraram aqui o meu corpo,
junto à campa de Nicholas, o banqueiro
e de Priscilla, a sua mulher.
Considerai, ó almas prudentes e piedosas,
como a vida, contra a corrente,
traz honras funerárias a quem viveu na humilhação.

 

MASTERS, Edgar Lee. Spoon River (Uma Antologia). Tradução: José Miguel Silva. Editora: Relógio D’Água.
Escolhido por: Augusto Bessa

 

Edgar Lee Masters – Epitáfios de Spoon River

13.07.23

27cul04f1-U312015486582Dt-U31709125248637WC-656x49

OLLIE MCGEE

Vistes caminhar pelas ruas da povoação
um homem cabisbaixo e de rosto cadavérico?
É o meu marido. Esse que, com secreta crueldade,
que nunca revelei, me roubou a juventude e a beleza;
até que, por fim, enrugada, com os dentes amarelos,
quebrado o meu orgulho, humilhada e submissa,
desci a esta cova.
E sabeis o que devora o coração de meu marido?
O rosto que eu fui, face ao rosto que ele me deu!
É isso que o arrasta para o sítio onde estou.
Na morte, assim, alcancei minha vingança.

 

MASTERS, Edgar Lee. Spoon River (Uma Antologia). Tradução: José Miguel Silva. Editora: Relógio D’Água.

Escolhido por: Augusto Bessa

Agustina Bessa-Luís . A infelicidade

10.07.23

agustina1.jpg

“Quando se sofre na idade de ser feliz, nunca mais se acredita na felicidade; nem como acaso, nem como recompensa. Os nossos tormentos tornaram-se num hábito mais querido do que qualquer compensação… - A infelicidade é uma forma de renúncia, não tem nada que ver com a desgraça. É a mais ardente das amantes e por ela sacrificamos tudo: a honra e os amigos, e até Deus.”

 

BESSA-LUÍS, Agustina. Fanny Owen. 4ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2002.

 

Por: Celeste Sampaio

Entrevista - Alexandre Guerreiro

08.07.23

image.pngAlexandre Guerreiro

Doutor em Direito (Ciências Jurídico-Internacionais e Europeias), pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Investigador FDUL nas áreas de Direito Internacional Público, Direito Europeu e Direito Penal desde 2021; Assessor Parlamentar da Assembleia da República, 2014-2016; Analista de Informações (SIED), 2007-2014; Comentador TVI para assuntos de Justiça, Segurança e Internacionais, 2016-2020; Comentador SIC Notícias para assuntos relacionados com o conflito Ucrânia/Rússia, desde 2022.

Consegue ainda encontrar tempo para se dedicar ao seu canal de Youtube, onde analisa, quase diariamente, assuntos da política internacional, dando especial atenção ao conflito na Ucrânia.

Curiosos, quisemos saber mais e o Doutor Alexandre Guerreiro teve a gentileza de nos conceder a entrevista que passamos a publicar.

 

Alma do Diabo - Começaríamos por perguntar-lhe o que o levou a seguir a carreira de Direito Internacional?

Alexandre Guerreiro: Desde muito jovem, não me recordo da altura em concreto, mas, eventualmente, na adolescência, interessavam-me muito as questões de política internacional sobretudo pela diferença e contacto entre culturas. Achava, no entanto, que a via das Relações Internacionais e da Ciência Política era muito redutora e, como quis seguir Direito e gostei das cadeiras relacionadas com política e com Direito Europeu e Direito Internacional, bem como com o Direito Penal, achei que era um caminho para seguir. A verdade é que o Direito Internacional tem a virtude de juntar aspectos de política e direito interno com a realidade de muitos países e cruza-se ainda com todas as áreas do Direito. Acho que é, na verdade, a área mais abrangente do Direito e um desafio constante.

 

AD – Demonstra ter um vasto conhecimento de geopolítica a nível global, mas debruça-se sobretudo no que diz respeito à Rússia, falando até a língua do país. Este interesse é apenas profissional ou é também admiração pela historia e cultura desse povo?

AG: A minha inclinação para a Rússia é um misto de vários factores: desde logo, as questões relacionadas com a Rússia suscitam-me particular interesse pela história e pela cultura do povo russo, é um país que foi império (durante o czarismo), reconfigurou o seu modelo de império (entre 1922 e 1991) e mantém as características de império que convive de forma única com 192 grupos étnicos, várias nações e 11 fusos horários. Tem uma característica em comum com a Alemanha dos últimos 140/150 anos: sempre que bateu no fundo e a julgavam de rastos, reergueu-se e impôs-se como potência continental e global. Depois, a Rússia tem outra particularidade que desperta o meu lado de investigador desde há muitos anos: é permanentemente diabolizada e alvo dos mais variados preconceitos, seja ao nível político, seja também ao nível social. Desde que me conheço como pessoa que sempre vi à minha volta (em alguns meios próximos e até na escola) pessoas que falavam da União Soviética e da Rússia como um país de bandidos, de carniceiros, de gente oprimida e na miséria. Isto desperta a minha curiosidade a ver se é mesmo assim como contam. Sou assim em tudo na vida. Mas a Rússia é o "assunto quente" do momento, talvez por isso pareça que me dedico em exclusivo à Rússia, o que não é verdade. Tenho uma boa parte da minha carreira dedicada ao continente africano, às questões europeias e também às dinâmicas no mundo islâmico. Aliás, basta ver pela minha produção científica, a qual inclui, naturalmente, a Rússia e a União Soviética.

 

AD - Tem-se revelado, provavelmente, o mais certeiro analista português do conflito militar na Ucrânia. Nos seus vídeos antecipa acontecimentos que se concretizam em poucos dias. Isto, contrariando a opinião vigente na comunicação social dominante. Mesmo assim, em Portugal é apelidado de pró-russo, putinista, ex-espião…

Qual é o problema da opinião em Portugal? Será que o espaço mediático é demasiado pequeno para a crítica às ideias dominantes?

AG: Agradeço o elogio e o reconhecimento, mas tenho de frisar que o analista não faz vidência, faz análise de determinadas realidades com base em sinais que vai recolhendo ao longo do tempo e a partir dos quais consegue passar a compreender uma realidade fundado numa base comportamental dos decisores políticos e da população. E é essa compreensão e capacidade de adaptação a meios culturalmente, por vezes, antagónicos ao nosso que ajuda a antever o acontecimento seguinte. Claro que em determinadas realidades pode demorar mais tempo do que noutras. E é por isso que é preciso, antes de mais, trabalhar os acessos à informação, incluindo a privilegiada. Porque é a informação certa e verdadeira que possibilita análises mais eficazes. O problema da opinião em Portugal é o problema do país em geral: há demasiada gente a falar do que não sabe e a "inspirar-se" em todo o tipo de fontes que corroborem os seus preconceitos, porque as pessoas querem partir de um preconceito e agarrarem-se a todo o tipo de elementos que as ajudem a validar esse preconceito como sendo o caminho certo, o que significa que a probabilidade de acerto é manifestamente baixa. Actualmente, faltam "expedidores" a Portugal: nomes como Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto são uma miragem apenas digna dos livros de história, já não temos quem vá para o campo sem preconceitos à descoberta na esperança de passar a conhecer o desconhecido. Agora, a generalidade dos académicos faz "ciência" com base naquela lógica que descrevi na frase anterior, o que faz com que não tenhamos académicos e tenhamos, antes, pseudo-activistas que usam a ciência e querem criar ciência para fins errados. Começa aqui e depois arrasta-se para a comunicação social, que em vez de servir o interesse público serve, cada vez mais, de megafone de agendas ideológicas e empresariais. Só isso justifica termos meios de comunicação absolutamente despudorados na recusa que fazem do pluralismo nos mais variados meios. E é por isso que pessoas como eu têm sempre rótulos sobre si: quando me chamam "pró-Rússia" ou "putinista", etc, são as pessoas a atacarem o mensageiro quando são impotentes para colocar em causa a mensagem. Muitos não acreditam, mas chamarem-me esse tipo de coisas passa-me completamente ao lado.

 

AD - Que tipo de represálias tem sentido desde o início do conflito?

AG: Ser preterido em concursos académicos quando sou o mais qualificado, tenho vários exemplos; ser tratado como produto tóxico pelos pares na Faculdade de Direito de Lisboa; ser também visto como tóxico pelos meios de comunicação, alguns dos quais aonde eu tinha alguma presença; os insultos e ameaças diários (literalmente) desde o início do conflito; as pessoas que se foram afastando por eu "ser" o "ex-espião putinista".

 

AD - Tendo em conta o bloqueio ocidental a várias fontes noticiosas (as consideradas aliadas ou dependentes do governo russo), quais são os canais de informação credíveis, e ainda acessíveis, que recomendaria ao cidadão comum que apenas queira conhecer o outro lado do conflito?

AG: Sinceramente, com algumas reservas, destaco a neutralidade geral da Al Jazeera, onde ainda vamos encontrando uma abordagem minimamente séria. A Reuters também consegue ser feliz na maior parte das abordagens que faz. A partir daqui, quem quiser conhecer o outro lado do conflito sem exageros ideológicos (porque também os há do lado russo) tem de recorrer à RT, à TASS, à RIA Novosti e ao VZGliad.

 

AD - Existe assim tanta diferença de liberdade de expressão entre o mundo ocidental e o mundo russo? Na Rússia, vive-se de facto sob o controlo de um regime autoritário ou podemos falar de um país mais próximo das democracias ocidentais?

AG: Temos de começar por definir "democracia". A democracia não é o que os Estados proclamam ter, nem sequer o que os manuais académicos ou os manifestos políticos dizem que é. Democracia é o que as pessoas sentem que têm e a forma como o Estado prossegue o bem-estar e o ser humano como fim e não como meio. Eu dou sempre o exemplo do Democracy Perception Index, um estudo conduzido pela Alliance of Democracies Foundation. Uma das primeiras conclusões deste estudo, realizado anualmente, é que "as pessoas não pensam que os seus países são muito democráticos... mesmo nas democracias". Repare que, à luz deste estudo, a China é o 2.º país, após a Coreia do Sul, com menor número de pessoas a acharem que a democracia do seu país fica aquém do que entendem ser necessário. Há mais pessoas em Portugal a acharem que o nosso país não tem democracia suficiente do que na Rússia. Mesmo as ditas "democracias ocidentais" têm nuances: não são democracias no seu estado pleno, são democracias sempre condicionadas por agendas ideológicas e reféns da forma ocidentalizada de ver o mundo. Só por aqui a Rússia será sempre considerada "distante" das democracias ocidentais. Repare que a Ucrânia tem vindo a evoluir como ditadura e por cá continua-se a falar da Ucrânia como exemplo de liberdade. Até 23 de Fevereiro de 2022, a Ucrânia era o ninho dos neonazis de toda a Europa, a partir de 24 de Fevereiro de 2022, a Ucrânia passou a ter resistentes e justiceiros pela liberdade. Se a democracia é incoerente e volátil em função de modas, então a Rússia seguramente não é uma democracia ocidental. A verdade é que, digo-o sem qualquer problema, na Rússia há liberdade de expressão e é um país onde não existem direitos fundamentais absolutos, estando todos eles sujeitos a uma reserva geral de ponderação... como, aliás, se verifica em todas as "democracias ocidentais".

 

AD - Em Portugal, talvez seja unânime a opinião de que na Rússia, além da falta de liberdade de expressão, falta também qualidade de vida e de que esta nação tem valores manifestamente inferiores aos dos ocidentais. Como se ainda existisse uma cortina de ferro a separar as duas realidades. É assim na realidade?

AG: Uma vez mais, vou justificar a minha posição com base nos indicadores de entidades oficiais. Em 2022, a UN-Habitat lançou um estudo em que avaliou o nível de prosperidade das 50 maiores metrópoles mundiais. Além de metrópoles ocidentais, temos também Moscovo e outras de outros pontos do planeta. No final, Moscovo ficou em 1.º lugar em dois indicadores: qualidade de vida e infra-estruturas. Logo aqui, a UN-Habitat deve ser putinista ou, então, está "comprada" por Sobyanin (Presidente da Câmara Municipal de Moscovo). A qualidade de vida em Moscovo, por exemplo, é inacreditavelmente superior à do Ocidente: o Estado funciona, a sociedade funciona, não falta nada. Claro está que não podemos interpretar as dificuldades linguísticas como "falta de qualidade de vida". Não é, certamente, esse o critério. Depois, os russos têm outra virtude: não são tolerantes com o crime, sobretudo os crimes contra a vida e os crimes sexuais. Têm mão pesada e repudiam este tipo de crimes como não encontramos no Ocidente, onde, não raras vezes, vemos crimes sexuais contra crianças serem sancionados com penas suspensas. O sentido de colectivo, de comunidade, é superior na Rússia do que no Ocidente, incluindo em Portugal, não tenho dúvidas do que digo.

 

AD - Quais são, em Portugal, os analistas e/ou comentadores que considera que acrescentam valor ao debate público?

AG: No que respeita a Rússia, o Major-General Agostinho Costa, o Major-General Carlos Branco e o Major-General Raul Cunha. Sobre política em geral, sempre me assumi fã da Marina Costa Lobo e do António Costa Pinto. São, na minha opinião, os mais ponderados e equilibrados e que trazem vários pormenores para reflexão que não encontramos noutros.

 

AD - Há uma percepção que nós, europeus, estamos a seguir os EUA para conflitos sem questionar. Tendo em conta a falta de crítica dos vários líderes europeus, pensa que ainda existem lideranças fortes, países com voz própria?

AG: Lideranças fortes temos várias, sobretudo algumas que servem para liderar no sentido de convencer os seus a seguirem as orientações dos EUA. Também temos vários exemplos de vozes dissonantes sem que isso signifique necessariamente a presença de uma liderança forte. Mas lideranças fortes no sentido de se ter a capacidade para olhar à volta e tomar decisões difíceis, mas sensatas, sem receios de se ser perseguido por grupos de Estados ou até no plano interno, vejo apenas Viktor Orbán e Recep Erdogan (no quadro União Europeia/NATO). Depois, temos, claro, Vladimir Putin, Ali Khamenei e Xi Jinping.

 

AD- Quais considera serem os grandes líderes dos últimos 30 anos?

AG: Vladimir Putin e, com as devidas proporções, Aung San Suu Kyi, Recep Erdogan e Angela Merkel.

 

AD - Pensa que estamos a assistir à quebra de valores da União Europeia e à sua consequente morte lenta?

AG: A União Europeia é uma organização regional com características de Estado semi-federal e não tem uma identidade própria definida por acordo dos Estados, é um barco à deriva empurrado pelos ventos do "Novo Mundo". Ainda hoje, ninguém sabe exactamente quais são as características da União e que a diferenciam dos EUA, ainda hoje não foi possível construir a consciência de "cidadania europeia". E ver lideranças da União Europeia e dos Estados como sendo meros fantoches de interesses empresariais e ideológicos só ajuda à implosão da União.

 

AD - O conflito na Ucrânia trouxe à ordem do dia assuntos da política internacional que há muito mereciam a nossa atenção. Um desses assuntos é a disputa entre o Ocidente, a Rússia e a China pela África. Figuras tão diferentes quanto Sergey Lavrov e Josep Borrell visitaram o continente e os Estados Unidos convidaram vários chefes de estado africanos para uma cimeira em Washington que não se realizava há 8 anos. Nesta velha/nova corrida a África, tanto a Rússia como a China podem sair favorecidos em detrimento dos ocidentais.

Considera ser este um cenário provável? Se sim, qual seria o impacto na balança do poder a nível mundial e quais seriam as consequências para a Europa?

AG: Julgo que a crescente capacidade de Rússia e China para se assumirem como alternativa que constrói pontes prósperas e destrói muros de preconceitos só atrai mais países para a esfera de influência de ambos. Os pontos em comum são manifestamente superiores e maiores em quantidade do que os pontos de divergência. Os BRICS continuam a afirmar-se nos planos económico e político e em Julho vamos ter uma Cimeira Rússia-África que só vai servir para estreitar ainda mais os laços entre a Rússia e África. A desdolarização está em curso com resultados já bastante visíveis. Entretanto, o Ocidente continua com a forma de pensar de 1815: nós somos os povos civilizados e os outros são os bárbaros. Ninguém se aproxima de alguém que tem esta ideia e forma de estar connosco.

 

AD - Além da China e da Rússia, quais são as nações que poderão vir a assumir maior proeminência na liderança mundial? E de que forma isso mudaria o mundo?

AG: Os BRICS, a Arábia Saudita, a Nigéria, a Argentina, o Vietname e a Turquia. Todos estes são o verdadeiro reflexo de uma ordem multipolar onde não temos a hegemonia das ambições do universalismo ético de uma potência ocidental, mas privilegiamos o relativismo cultural com vários focos de poder que procuram chegar ao entendimento, insistindo numa perspectiva de equilíbrio global e no multilateralismo que tem sido sucessivamente adiado desde 1945.

 

AD- Que projectos tem para o futuro? Augura dedicar-se à política a curto, médio prazo?

AG: Quero continuar a apostar no crescimento do meu canal de YouTube que vai apresentando resultados muito interessantes, na minha óptica. Depois, quero manter a minha actividade de investigação em questões internacionais. Tenho parcerias com instituições de ensino superior da Rússia, da Polónia e da Malásia e espero continuar a expandir essas parcerias nos domínios da investigação e do ensino do Direito Internacional. A política não é algo que me passe pela cabeça como prioridade, até porque não gosto de me fazer convidado, espero que me convidem. Mas insisto no que tenho dito ao longo dos últimos anos: embora não tenha em vista nada no imediato, com o projecto certo e com as pessoas certas, jamais diria que não a um convite para a política. Depende do que aparecer e se aparecer. Se surgirem projectos nos quais não me reveja (sempre ciente de que não existem projectos e organizações que sejam o meu reflexo a 100%) ou que não me motivem, não quero aparecer por aparecer. Não tenho tempo para isso.

 

Paul Valery . Amores e ódios, uma explicação

06.07.23

paulvalery2.jpg

“Por que amo o que amo? Por que odeio o que odeio?

Quem não sentiria o desejo de derrubar a mesa dos seus desejos e dos seus ascos? De mudar o sentido dos seus movimentos instintivos?

Como é possível que eu seja ao mesmo tempo como um ponteiro magnetizado e como um corpo indiferente?…

Contenho um ser menor, a quem tenho de obedecer para não sofrer uma pena desconhecida, que está morto.

Amar, odiar ficam abaixo.

Amar, odiar - parecem-me acasos.”

 

VALERY, Paul. O Senhor Teste. 1ª ed. Lisboa: Relógio d’Água editores, 2018.

 

Por: Celeste Sampaio

Paul Valery . A verdade de nós próprios

04.07.23

paulvalery.jpg

“É impossível recebermos a <verdade> de nós próprios. Quando a sentimos formar-se (é uma impressão) forma-se ao mesmo tempo um outro desusado eu… que nos orgulha… - de quem somos ciosos… (É um pináculo de política interna.) 

Entre Eu claro e Eu turvo; entre Eu justo e Eu culpado, há velhos ódios e velhas conciliações, velhas renúncias e velhas súplicas.”

 

VALERY, Paul. O Senhor Teste. 1ª ed. Lisboa: Relógio d’Água editores, 2018.

 

Por: Celeste Sampaio

Pág. 1/2