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Alma do Diabo

Alma do Diabo

A Bicha ao poder

20.10.24

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Anacoreta, um bicha solitário (em minha defesa, foi o autor que escreveu) que se imiscuiu na floresta, num cenário de pós-qualquer-coisa, foi o terreno onde Manuel Bivar semeou o seu livro A CHARCA. Mais um livro que passou despercebido, talvez porque, nas listas de supermercado criadas para incentivar o comprador a pagar, não existem críticos que sejam verdadeiramente amigos do Manuel Bivar, ou então, a sua editora é pouco pujante em oferendas.

Ora, A CHARCA enterra-nos numa ruralidade intensa, algures por aí, onde o homem desistiu de si e procura por um lado primitivo que há muito o abandonou (brilha mais o metal e a sua luz conduz-nos tais como reis mago). Num tempo em que os homens “não eram mais machos”, estavam “incapazes de sacar da pila e abandonar a fêmea sem grandes considerações morais, mas também não abriam cu, para se deixarem ser fodidos num qualquer baldio” resultavam em “pilas frouxas, mamilos caídos, o peito enterrado e metido para dentro, peles branquíssimas e sem pêlos, caras desbastadas pelo acne, ancas largas e rabos lisos da cadeira do computador com prenúncios de quistos”, em conclusão tinham apenas “certa maldade de bicha ressabiada” uma mesquinhez sem grandeza. Bichas que não eram bichas, machos que não eram machos” no fundo “pilas que não levantavam” (Não se sintam ofendidos com a descrição, somos todos o Deus Priapo pois nunca ninguém se queixou). Se somos pilas murchas ou não a de Bivar deve ser bem erecta, pois teve a capacidade de provocar um sismo na forma como estudou o nosso tempo. E isto “do nosso tempo” parece ser uma gíria cronológica de situar o autor na época em que escreveu, o ganho em Bivar é sobretudo a coragem e a provocação com que o faz, e ainda, a comicidade linguística que propõe. Para se estudar o tempo não basta compor serenatas bonitas que todos irão aclamar, mas sim, penetrar nos interstícios da dor, de forma a abanar o leitor, fazê-lo pensar em mais qualquer coisa que o tire do marasmo rotineiro. 

A CHARCA nasceu num sítio onde o indivíduo desistiu da civilização e encontrou espaço para o deslumbre através do meio bucólico que o amarrou. Isolado num ambiente selvagem, o nosso personagem nutre uma atenção pura sobre o espaço, há, no conjunto da obra, uma grande riqueza vocabular sobre aspectos da fauna e flora, com inúmeras passagens descritivas da paisagem (palavra que anacoreta abomina). E é nas pedras, giestas e eucaliptos que o nosso bicha procura construir a sua charca, lodo aos seus pensamentos e reflexões. Nesses momentos de profundidade somos atropelados por interpretações sumárias de alguns hábitos do tal “nosso tempo”:

INTELECTUAIS

Os conhecimentos limitados que faziam qualquer um rei antes da internet eram agora facílimos de adquirir e muitas vezes professores universitários e de liceu eram deixados sem chão por alunos com acne ainda activo. Os chamados intelectuais tinham a cabeça dizimada por excesso de pesquisas na internet, informação em fragmentos não organizada, chavões que se repetiam e que permitiam fingir uma certa organização mental

VIDA NAS CIDADES

todos se sentiam desterritorializados e incapazes de sentir algum lugar enquanto seu. A cidade era uma máquina de centrifugação que a todos excluiu para um qualquer lugar onde os esperava a irrelevância ou talvez a desgraça porque não havia já lugares onde ganhar dinheiro fácil

TRABALHO

O trabalho continuava a estar presente em todos os discursos embora fosse óbvio que ele tinha acabado… os que buscavam trabalho e não o encontravam sentiam-se inúteis, os que encontravam sentiam-se desgraçados porque trabalhavam demais e não conseguiam pagar as contas, a vida e o dentista. Cada vez mais gente tinha falta de dentes e os risos tornavam-se contidos

PESSOAS

A falta de liberdade de espírito resultava em gente cada vez mais fechada sobre si mesma, cada vez mais desgraçada e perdida no mundo e incapaz de se reproduzir

O CANSAÇO DA VIDA

Os que trabalhavam e dependiam dos seus cada vez mais diminutos salários e que tinham um ou dois filhos por vestígios de senso de dever arrastavam-se contidos, com olheiras , cansados. Um enorme cansaço tudo atravessava e não sobrava energia que não fosse para ir ao hipermercado…

Num mundo onde a telenovela preenche o espaço televisivo de lés a lés (telenovela política, telenovela jornalística, telenovela futebolística…) o encaixe literário de cada um só pode estar ao alcance de um guião bacoco. Se um indivíduo é um produto da estupidificão programada só poderá procurar na literatura cúmplices a essa ordinarice. É claro que os escribas cozinham assim “o caldo verde” comestível que as massas vão adorar, e escrevem historietas, belas metáforas, maniqueismos de valor assegurado, reflexões sobre temas quentes, prosódia sobre  os principais furúnculos eternos da alma. 

O que Bivar fez aqui é diferente. Neste livro não há vilões, heróis, bons, maus, história com princípio e fim, revelação moral, nada… Pelo contrário, é preverso. Ou seja, o livro não tem a cenoura para o leitor correr atrás, tem antes um incêndio que só se apaga compreendendo-o. E o fogo que nos é dado é “a arma dos desvalidos, dos oprimidos, daqueles a quem querem controlar e a quem tudo é negado”. E os incendiários são os condenados da civilização, que celebram o fogo por serem desgraçados, “porque se sentem revoltados e porque o incendiário é … o revolucionário possível”. E não é um simples acto de bonomia em relação aos transgressores mas ter a ousadia de os descrever e pensar é já uma prova de maior conhecimento de nós próprios. Quem sabe se um dia não seremos “o velho fechado no lar a ver televisão dia e noite, que sai discreto e puxa fogo à serra numa derradeira e última acção cujo resultado assiste ser transmitido em directo na televisão”. Anacoreta não passa de um bicha impuro e é por isso que nos toca, pois humano que é humano é perverso e dá-lhe para a maldade, retirando dela toda a satisfação possível. Porque os desvalidos desta vida também merecem ter a sua história e é o olhar sobre este universo paralelo que torna o livro diferente e forte. 

Espero que estas “bichas” assumam o poder da literatura ou, pelo menos, que continuem a refrescar a charca putrefacta da nossa cultura. Que continuem a usar a linguagem como uma plataforma para, sem pejo, gozarem com a vida e a criticarem oferecendo assim outro ângulo para o leitor observar (leia-se a passagem sobre D. Sebastião, visto como um “bissexual sanguinário”).

 

Por: Luiz Miguel Aragão