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Alma do Diabo

Alma do Diabo

A piada como escape ao difícil acto de pensar

22.11.22

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Conversavam assim Jacques com o seu amo: “Na vida meu, amo, não sabemos com o que havemos de alegrar-nos e com o que havemos de afligir-nos…caminhamos pela noite por baixo do que está escrito lá em cima, igualmente insensatos dos nossos desejos, na nossa alegria e na nossa aflição. Quando choro verifico muitas vezes que sou um tolo - E quando ris? - Verifico ainda que sou um tolo, porém, não posso deixar de chorar nem de rir: e é isso que me enfurece - o que tentaste? - Troçar de tudo, ah se eu tivesse conseguido. - Para que te serviria? - Para me livrar de preocupações, para não ter necessidade de mais nada, para me tornar senhor de mim mesmo…” Um objecto ou um sujeito alvo de troça perde o ímpeto sagrado, a piada contraria a seriedade do mundo, no fundo, coloca perguntas ao inquestionável. Tal como o estimado Jacques sugere, rir é reagir às fúrias quotidianas e encontrar graça na nossa trivial existência. 

Dos recônditos tempos do teatro grego até aos vários programas na televisão de hoje, a comédia soube integrar-se como elemento indispensável ao gosto geral. Depois de um dia farto ninguém vai ler Hegel para o sofá, o que interessa por norma é “ocupar-o-tempo-sem-pensar” pois a cabeça já cumpriu a sua função. Por isso, antes de fazer stand by, é sempre apetecível uma boa novela, uma viagem pelas teclas virtuais do telemóvel sob a forma de redes sociais ou jogos, ou mesmo, uma boa trapaça. Portanto, quem hoje vê programas relacionados com humor não são os mesmo espectadores alternativos de há vinte anos atrás, que se refugiavam nos canais por cabo ou noutros acessos marginais para obterem conteúdos “fora da caixa”, que continham assuntos danosos que só por isso justificava o seu afastamento do público principal, de forma a não os ferir, ou, numa explicação mais escorreita, a não chegar a um público ainda não preparado. Foi neste quadro que surgiram novas figuras no palco humorístico nacional como o prodigioso Ricardo Araújo Pereira, o nosso “John Stewart português”. 

Desde as primeiras aparições em programas como “Perfeito Anormal” ou em stand-up comedy underground, como em argumentos criados a partir das Produções Fictícias que alimentaram o rei do humor na altura, Herman José, até aos programas em horário nobre que o elevam a umas das principais figuras da televisão, Ricardo Araújo Pereira soube jogar com as suas escolhas, bem como, jogar com as escolhas que o público exigia. No contexto do espectador actual, que deseja ver o humor-sem-dor e sem-ser-preciso-pensar-muito, o seu conteúdo alimenta os gostos comuns. Nos seus vários programas, iguais em conteúdo, diferentes no nomes, brinca com os principais dirigentes políticos, apanha-lhes as “quedas” sob a forma de gaffe, descontexto, dislexia, ou mesmo autenticidade, depois entrevista-os com perguntas engraçadas, num teatro de terceira categoria onde o entrevistado já decorou as respostas que vão ficar bem. A juntar a isto, insere nas suas equipas humoristas emergentes, que lhe possibilitam obter um trabalho hábil com direcção para outras gerações. Ricardo Araújo Pereira, construiu uma personagem que já ultrapassou o mero humorista: debate política, desporto, religião, literatura e escreve para jornais e revistas com regularidade assinalável. Ninguém tem dúvidas do seu enorme talento de construção de humor, como também não se nega o trajecto que se iniciou nos subúrbios - onde figuras, que hoje se sentam ao seu lado em programas de tv, eram facilmente alvo do bullying cómico, ou, onde se criavam registos que marcavam gerações e elevavam o humor a outra coisa - e que estacionou num qualquer altar da fama - usa um pastiche já gasto, numa repetição de si próprio, suaviza as palavras numa linguagem de uma aluno gozão de quem os professores acham imensa piada. Estar num programa seu, ou ser por si entrevistado passou a ser um dever a quem augura um cargo de poder. A sua popularidade é tal que uma crítica ou chacota a alguma personagem num dos seus programas passou a ter ressonância nas opiniões. Se a escala de quem vê é gigante, os estilhaços do seu humor chegam a todo o lado. O humor, quando faz revista à actualidade, oferece um olhar maniqueísta sobre determinados assuntos, o que “ajuda” quem escuta a formular uma opinião leve e desprovida de rigor interpretativo, visão essa a de quem escreve. Com isto, para nos mantermos informados e com opinião, basta olhar para as piadas e com o riso marcarmos a nossa posição perante o nosso redor. Tal como nos lembra Jacques, o riso serve para nos livrarmos das preocupações.

 

Por: Dinis de Sousa Reis