Andreia C. Faria . Odeio e amo
“Odeio este tempo e a forma como os artistas, os opinadores, os decisores, os identitários, os proprietários, os poseurs, os empreendedores se movem nele: com avidez e condescendência, como se alguém, acenando de um qualquer futuro, lhes prestasse já homenagem. Bestas sensíveis, argutas, que para defenderem o seu prazer inundam à terra inteira um terror sofisticado, com disfarce de razão e alegria. Odeio os boçais, os intelectuais, os hedonistas. Os pais que geram filhos num vagar de lobos, os filhos desdobrando a cara em lobo depois de terem depredado lobos. Odeio alegrias programadas, o que há de artificial e de fedor a solidão nas festas em que a multidão, como árvores abatidas, deixa de encobrir o vazio, a clareira.
Já não há nada para amar. Já tudo foi arregimentado por belos discursos e o próprio amor está reduzido a um marketing insinuante, brutal. É necessária uma força sobre-humana para amar, para se estar sozinha com aquilo que se ama. É necessário um amor duro, calado, invertido. Um que se deite a todo o comprimento daquilo que passa por amor, dormindo-lhe nas imediações, como a cobra que se mede pela sombra sombra do encantador, antecipando a futura refeição.”
FARIA, Andreia C.. Clavicórdio. 2ª ed. Lisboa: Língua Morta, 2022.
Por: Celeste Sampaio