Antoine de Saint-Exupéry. Antes do voo.
" E não é que não pense uma coisa muito diferente sobre a guerra, sobre a morte, sobre o sacrifício, sobre a França, mas falta-me um conceito orientador, uma linguagem clara. Penso por contradições. A minha verdade está reduzida a bocados e só os posso analisar um após o outro. Se ainda estiver vivo, vou esperar pela noite para reflectir. A noite bem-amada. À noite, a razão dorme, e as coisas são mais simples. As que são verdadeiramente importantes retomam a sua forma, sobrevivem às destruições das análises do dia. O homem junta os bocados e volta a ser uma árvore calma.
O dia é para as cenas domésticas, mas, à noite, aqueles que discutiram reencontram-se com o Amor. Porque o amor é maior do que o vendaval de palavras. E o homem que apoia os cotovelos na janela, sob as estrelas, sente-se de novo responsável pelos filhos que dormem, pelo pão do amanhã, pelo sono da esposa que ali descansa, tão frágil, delicada e passageira. O amor não se discute. Existe. Que venha a noite, para me mostrar alguma evidência que o amor merece! Que venha a noite, para eu pensar na civilização, no destino do homem, no prazer da amizade no meu país. Que venha a noite, para eu desejar servir alguma verdade imperiosa, embora talvez ainda inexprimível…
Neste momento, sinto-me exactamente igual ao cristão a quem a graça abandonou. É claro que representarei, honestamente, o meu papel ao lado de Dutertre, mas da mesma maneira que se guardam os ritos quando já não têm conteúdo e quando o deus já não está lá. Esperarei pela noite, se ainda puder estar vivo, para andar um pouco a pé pela estrada principal que atravessa a nossa aldeia, envolto na minha solidão bem-amada, a fim de conhecer a razão por que devo morrer.”
Saint-Exupéry, Antoine. Piloto de Guerra. Relógio d’Água Editores, 2015
Por: Celeste Sampaio