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Alma do Diabo

Alma do Diabo

Já não há bengalas

10.11.22

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Dizia assim a notícia: “Quando esta tarde subia o Chiado o nosso presado e illustre amigo sr. dr. Alfredo Pimenta, o escriptor sr. Aquilino Ribeiro vibrou-lhe uma bengalada de que resultou um ferimento que foi pensado no Posto da Misericordia” - Jornal o Dia, nº 2038, 16 de Abril de 1923. Assim reagiu Aquilino Ribeiro às críticas que lhe foram endereçadas por Alfredo Pimenta numa rubrica de jornal (Notas de um diletante), onde, entre outras observações, apelida a obra de Aquilino de “estilo pobre” e de uma “banalidade insuportável” reduzindo a obra, por si lida, a uma “ilusão literária”. As alfinetadas de jornal do doutor Pimenta conduziram-no a um KO técnico em plena rua, aplicado pelo firme e bruto beirão, que, com uma bengala pontuou a cabeça do seu oponente. A crítica tratada à cacetada (epa era a forma de sinceridade mais profunda do Aquilino!) derrubada por uma bengala que elevava a campeão não só da verve como do músculo (talvez o ideal másculo dos anos 20 português que fazia suar as camisas de noite das donas de casa lusitanas). Depois de várias cartas acusatórias de jornal e de alguma crítica ao acto viril, Aquilino responde assim ao seu frágil adversário de luta: “Na carta deste senhor, seja por malícia ou simplicidade de espirito, novamente vejo emitido o juízo errado que corre mundo sobre a desafronta que julguei indispensável tirar dum indivíduo que me ultrajou. E esse juízo consiste em proclamar que pretendi castigar uma liberdade de crítica. Crítica? Mas é crítica afirmar que toda a minha obra não passa de mistificação, sem dizer por quê? E' crítica escrever que andei a apanhar do chão as pontas de cigarro de Anatole France, para compor a palestra do Nacional, sem outra forma de processo? E' crítica apostrofar os meus admiradores de estupidos ou de hipocritas, sem trazer uma justificação da injuria?“ Aqui está uma recomendação importante para as gerações futuras de críticos - JUSTIFICAÇAO, a reter, meninos! Assim reteve também Alfredo Pimenta que, ao que se consta, tirando as cartas de jornal lamuriosas, não fez novas abordagens à obra do beirão (aprendeu a lição portanto, ou então, amuou, ou melhor, a pancada sofrida deu-lhe enorme enxaqueca sempre que pegava num livro do autor).

É de assinalar que um crítico consiga escorrer tinta de jornal por cima de um nome proeminente da época, (uhm, se o Pimenta soubesse…) talvez até isto seja um feito há 100 anos atrás só por termos hoje uma carência quase total desta espécie de opinião. Depois, é de reconhecer o carácter do escritor que se sente ofendido perante o que julga ser um ataque à sua obra e reage, usando o corpo (quantos escritores não viverão dentro de armários a esconder a sua fúria! O que interessa é não a revelar para não parecer mal, os editores dizem que pode afectar as vendas). 

Onde é que pára hoje a crítica feroz capaz de levar à rua cenas de pugilato? Se calhar, antes de saber o que não existe, importa descobrir o que existe - como é que num mundo de hoje, que se proclama como pós-moderno de existência heterodoxa, as existências não se choquem? É aborrecido que no minúsculo universo literário português não haja um esgar, um encolher de pálpebras, um grunhido simples que seja… o rio corre sem uma gota que cause perturbação. Quem são os senhores escritores da bengala de hoje? (se calhar um Lobo Antunes usará uma, mas o andarilho já não lhe permite hasteá-la) Só fazem uso do elogio fácil e pouco elaborado, gostam todos uns dos outros, ninguém se aborrece com alguém da mesma estirpe, usam todos o mesmo sorriso para os clientes, querem todos estar nos mesmos sítios. Atrevo-me a dizer que são todos uns "coninhas” (olha a acusação homofóbica e de desrespeito para com a mulher, enviem os vossos emails para o Bento ou para o Dinis para expulsar este inergumeno - eu - deste espaço) todos são cândidos perante os colegas e os juízes das suas obras, dizem o que todos querem ouvir. Sendo representantes das letras fica mal até, não possuírem na ponta da caneta (mais do dedo) uma alusão a um desgosto duma leitura infeliz ou a um carácter azedo que encontraram num determinado certame, ou até, o contraste de visão pura daquilo que é a literatura contemporânea, certamente que existem técnicas e processos divergentes. Mas não, em Portugal está sempre tudo ótimo no mundo literário, vive-se numa “suruba” literária, todos se adoram, todos são magníficos, todos ganham grandiosos prémios, todos vendem, quando tudo está bem para quê ser um mete-nojo? E as bengalas? Quando a sinceridade do artista é recalcada pelo meio não pode existir Aquilinos que se levantam. Ah, e também não há Alfredos, quem é que se atreve para falar mal de um menino das letras de hoje? Nesta “suruba” as bengalas só servem para bater forte em mais um elogio malvado.

Por: Luiz Miguel Aragão