O lictor no mundo contemporâneo
Dizer “O Estado Novo acabou com o analfabetismo infantil”, ou “Céline foi o maior mestre das letras francesas do século XX”, ou simplesmente “Antigamente é que éramos uma grande nação”, são expressões que podem facilmente sugerir uma “intenção fascista” de quem as proferir, isto na interpretação moderna que se dá à linguagem e às opiniões. Este tribunal social rege-se pela leitura dicotómica do bom/mau, admissível/inadmissível, tolerável/intolerável, nela tricota as fronteiras e atrai os gostos a si para devorar as mentes “sãs” com a cartilha do correcto. Eis que surge a palavra “fascista” como um STOP ao que foi dito e silencia a divergência de forma a retirar significado ou interesse ao tema que se quis lançar. Os democratas modernos que habitam na sua maioria no parlamento da rede social dizem-se anti-fascistas... Vivendo numa democracia serão mesmo? E se tivessem vivido há 85 anos atrás seriam também anti-fascistas?
Na Roma Antiga, os magistrados do império quando faziam aparições públicas eram acompanhados por um lictor (um género de guarda-costas) que furava multidões para abrir espaço ao seu senhor. O lictor ostentava ao ombro um género de machado – fasces, instrumento de respeito que mantinha a ordem e estabelecia o seu senhor como símbolo de autoridade. A arma valia pelas explicações. No início do século XX a imagem dos fasces foi recuperada e tornou-se o símbolo dos movimentos fascistas na Europa. Representava vigor, autoridade e poder, uma forma de colorir com uma imagem o regime, querendo torná-lo uma chave para a segurança e um motor sinergético às aspirações das massas. Tentar conhecer os meandros do passado pode ser perigoso no presente. Perceber por exemplo as teorias formalizadas pelos intelectuais do fin de siècle ajudariam a perceber melhor o surgimento destes regimes, mas, interessa perceber? Ou pelo menos é possível debater-se isto?
A hipersensibilidade congénita desenvolve no “homo-modernus” uma apetência para a simplificação das matérias sobre a forma de bipolarizações ingénuas e em opiniões básicas para qualquer conteúdo. Ter opinião é uma obrigação na qualidade dos comensais modernos, mesmo que, para se saber sobre todos os temas se reduza a complexidade dos mesmos a uma sabedoria ligeira, comum nas massas populares habituadas que estão ao cultivo de uma razão leve. O contraditório passa então a ser uma afronta à simplificação a que nos habituámos. O oposto oferece sempre outra visão às discussões, permite saber outras verdades, lançar outras dúvidas, preservar as razões intrínsecas de existência do homem.
Para quê atribuir algumas qualidades (por menores que tenham sido) a feitos de um regime ditatorial? Lá está o fascista. Fim de conversa. Regime mau, tudo o que o envolve é mau. Porquê achar que Céline foi o melhor, sendo ele um anti-semita declarado? Lá está o fascista. Fim de conversa. Escritor com opiniões más, na sua construção não há espaço para valor. Antigamente quando não tinhas liberdade? Lá está o fascista. Fim de conversa. Opinião saudosista pelo passado mau, opinião intolerável. Os fóruns romanos do passado transformaram-se na actualidade em caixa de diálogo, murais, reacções binárias do Gosto/Não Gosto, vídeos sensacionalistas que se expandem pela ditadura do número de visualizações, canais generalistas parciais que engordam ao sabor da moda, tudo serve para instruir a razão do agora… Para manter a ordem, basta segurar com firmeza o fasce que trazemos ao ombro, ele guiará os mais incautos a uma visão correcta.
Por: Dinis de Sousa Reis