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Alma do Diabo

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Um mistério chamado Rentes

29.01.23

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O desprezo que é dado à obra de José Rentes de Carvalho no templo literário nacional é um sério caso de estudo. De recordar a cacetada dada pelo crítico do jornal Público, António Guerreiro que, no mesmo jornal no dia 4 de Maio de 2016, classificou a obra de ser “manifestação exuberante de hiperliteratura”, destacou a “verbosidade”, “desvios fraudulentos das palavras” para terminar puxou finalmente o gatilho e atirou-lhe apenas uma estrela. Interessante perceber que, um ano depois, este enxovalhado romance tão tristemente atingido por tão alto ilustre crítico, veio a vencer o prémio SPA, na qualidade de melhor livro de ficção narrativa. Há lá coisas… (Oh, o António Guerreiro de certeza não pertencia ao júri) Vamos lá ver, prémios valem o que valem, no entanto é curioso ler a reação do premiado “Deram-me um em 1939, ao terminar a quarta classe — uma caderneta da Caixa com 50 escudos — e o segundo vim a recebe-lo em 2012, setenta e três anos depois” Estes cubos de ironia talvez lamentem a pouca curiosidade que o persegue no seu país. 

Bom, vamos lá à obra… Com MONTEDOR somos levados para os locais de Portugal que "cheiram mal” que ninguém quer saber, ou melhor, sabem que existe mas não lhes interessa pois envergonha as visitas. O nome do título vem de um lugarejo por terras de Viana do Castelo e é lá que se passam a maior parte das peripécias da história. Vamos começar por aqui, escrever sobre  o interior, ou neste caso, zonas do país perdidas no mapa, pouco interessa à crítica nacional. MONTEDOR não é cosmopolita e as problemáticas que sugere não são sentidas pela grande maioria de quem escreve sobre livros - que não sentem proximidade literária por estes assuntos, ou porque, estes ilustres, são urbanos desde nascença ou se tornaram por afinidade. 

Tal como James Joyce conseguiu com “Dubliners”, Rentes tentou o mesmo com este  MONTEDOR algo que é difícil de aceitar para um leitor alvo - despir as nossas parvas vestimentas e fazer-nos olhar para o nosso corpo nu e vermos, as rugas, os sinais, os pêlos, tudo aquilo que se esconde e não importa mostrar (e que queres dizer com isto? Ai Aragão anda para a frente…) É neste quadro que se desenha o nosso Joca ou Freitas (o nome é referido apenas 2 vezes na obra, dando a entender a pouca importância que tem) personagem nula, sem força, sem garra, que sofre calado uma impotência selvagem de fugir da sua zona de (des)conforto, e que a única fuga possível é unicamente o sonho. Curioso o tempo narrativo situar-se num Portugal de Salazar (onde paira a sua presença nas paredes das casas públicas) e a sua musicalidade ainda se manifestar nos ouvidos de hoje. Observemos:

Apelo ao ficar em vez de ir - “A gente aqui está bem, está em paz, dando um jeito sempre se arranja um nicho. Deixa correr. Lá tudo são greves, complicações de estrangeiros, guerras. Olha os jornais.

Resignação - “A gente nasce, vive, morre. Ao menos morrer na nossa terra. E igualdade não existe em parte nenhuma. É questão de ter nascido em boa família, ou de acaso. Lotaria.

Realismo cruel que contraria o sonho - “Mas para que fui feito então? Para nada. Para ser bola, joguete, número, soldado de infantaria. Para querer e não poder, ter sonhos e ver os outros vivê-los

Vida sem horizontes - “Consolo-me com provérbios, gozo de pobre, a maneira de passar as manhãs, as tardes, as noites, sentado debaixo da vinha, paralítico. Vinte e dois anos. Mocidade, o melhor bocado da vida e outras medricas lidas e relidas que fazem destes dias perdidos um calvário. Sem cruz nem propósito.

A crença na sorte - “Um dia há-de acontecer. Mesmo uma calamidade, porque nada continua para todo o sempre. Ou talvez o pai enriqueça. Tem acontecido a outros. Ou que lhe saia uma lotaria, porque ele joga forte.

O medo - “As histórias que se ouvem, a prisão por um nada, um descuido, uma palavra a mais.

A bajulação - “Meu filho tens de agradar! Somos pobres, temos de parecer bem. Os ricos não gostam de quem anda desbragado. É o teu interesse! E o visconde é tão rico, pode ser que engrace, que te arranje um emprego.

A coscuvilhice - “Um pingente destes é capaz de atrair uma desgraça sobre a freguesia! E comunista! O padre fechou-lhe a porta, com ordem de nem passar perto da igreja. Dizem que no tempo da tropa já as tinha feito boas! Até roubos!

A cunha - “A fingir que não sei que os touros se pegam pelos cornos, o que no meu caso é dizer que vai a gente com bons modos e um presente a casa do senhor Fulano, fala-se à mulher, explica-se a tragédia pelo miúdo, com humildade, depois o Fulano, que é poderoso, que tem amigos, arranja uma teta, a gente continua a não esquecer os presentes ano adiante, pelo Natal, pela Páscoa, nos anos dele, nos anos da mulher, fala-se com respeito, guardam-se-lhe cortesias, bons bocados. Ele, em troca, padrinho, mantém a protecção, acode cada vez que outro ameaça a posta

Isto é português? Se calhar é. Gostávamos que não fosse? Talvez. Quem vive ou viveu em meios campesinos sabe o que valem estes pontos e a que níveis se jogam no dia-a-dia. A urbe apenas os abafa com o cosmopolitismo ostensivo e a parecença, desconfio, diferente daquilo que se é verdadeiramente. (Só é pobre quem quer, então!? Olhe para o corpo que sempre sonhou ter, lute por ele… )

Com uma linguagem simples e objectiva, Rentes de Carvalho traça características muito portuguesas, algumas delas que temos tendência a engolir a seco. (um brinde ao homem!) O jovem personagem é cobaia na dicotomia pobre / rico. Está aprisionado na sua sorte de pobre, os sonhos são os únicos que se esticam para tocar no mundo rico, mas desse lado só lhe sente o cheiro, sobre a forma de jornais franceses ou de cartas de um amigo australiano. O choque com a realidade provoca uma valente chapada ao nosso amigo, fazendo prevalecer a sua condição, que se alastra ao espírito e o apodrece, o que lhe causa uma incapacidade de agir. Não há libertação possível, não existem condições para se elevar socialmente, a não ser que se torne num cínico lambe-botas. O clima é sempre tenso, carregado de uma lógica pessimista de que as-coisas-só-podem-terminar-mal.

Deixemos de lado o estigma intelectualóide, que procura apenas limar os berlicoques da linguagem assente em preconceitos e olhemos para o valor intemporal (pelo menos até agora!) que a obra MONTEDOR tem para a literatura portuguesa, no realce da condição do tuga comum e na sua tomada de posição que é influenciada por um Portugal maior do que ele, que tende para o condicionar à priori.

O Senhor Rentes de Carvalho viverá sem que lhe seja reconhecido o valor que mereceu, apesar de no estrangeiro, mais propriamente na Holanda, país onde viveu, ser imensamente apreciado. (acontece a tantos…) Talvez daqui a alguns anos se debruce de novo por estes livros à procura de alguma portugalidade que falte aos intelectuais da época. Os livros também são mesmo assim, às vezes mais vale não serem lidos na sua época. As pessoas não gostam, querem outras coisas, como as que se fazem lá fora…

 

Por: Luiz Miguel Aragão

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